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Setembro Verde: depois de queda de até 30% na pandemia, transplantes são retomados com desafio da conscientização

Gratidão. É assim que Nelson Nadalin Filho, de 66 anos, define o seu sentimento após receber um novo rim no Hospital Universitário Cajuru (HUC), de Curitiba (PR). Ele convive há uma década com a diabetes, uma das principais doenças que pode levar uma pessoa à insuficiência renal. Do diagnóstico até o tratamento, foi preciso passar pela hemodiálise e entrar duas vezes na fila para fazer o transplante. Isso porque seu sistema imunológico não reconheceu o primeiro órgão transplantado em 2019, rejeição que pode acontecer com alguns pacientes. Finalmente, em outubro de 2021, ele recebeu mais uma ligação que mudaria sua vida. “Todos os dias, agradeço e rezo pelas famílias dos meus doadores, para transmitir meu muito obrigado”, declara Nelson, emocionado. 

De médico, para paciente. José Michel Gantus, de 68 anos, também recebeu uma nova chance de vida com um transplante renal. Assim como Nelson, ele precisou entrar na fila por um rim, junto de outras 26,2 mil pessoas, exatamente quando o mundo enfrentava a pandemia. De acordo com a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos (ABTO), registrou-se queda de 30% nas cirurgias desse tipo nos momentos mais críticos da crise sanitária, em decorrência da mobilização da rede hospitalar para priorizar o combate à covid-19. Apesar disso, em novembro de 2021, meses depois de ser inscrito na lista de espera, um telefonema trouxe a feliz notícia: um rim compatível, de um doador falecido. “Ter a oportunidade de receber novo rim foi como nascer uma segunda vez”, afirma José.

Histórias como as desses dois receptores se repetem no hospital paranaense que tem atendimento 100% via Sistema Único de Saúde (SUS) e já realizou mais de mil transplantes renais desde 2001. Os profissionais da unidade sabem que agilidade e precisão são essenciais para garantir que os transplantes renais sejam bem sucedidos. Também, porque conhecem o tamanho da fila de espera por um doador com compatibilidade. Para isso, os programas de pré e pós-transplantes são compostos por enfermeiros e técnicos de enfermagem que fazem o gerenciamento dessa lista, avaliações dos pacientes e acompanhamentos pós-cirúrgicos, pois o procedimento não se resume ao transplante. Além disso, antes de ser incluído como paciente à espera do órgão, existe o preparo com uma equipe multidisciplinar.

Da insuficiência renal ao transplante

Que os rins têm a missão de filtrar o sangue, muita gente sabe. Graças a eles, saem de circulação todas as impurezas que correm pela artéria renal até o destino final: a urina. Só que, se essa dupla de órgãos não funciona direito, é preciso recorrer à hemodiálise ou diálise peritoneal, ou seja, a filtragem artificial do sangue. No Brasil, mais de 150 mil pessoas dependem desse processo para viver. A doença renal crônica afeta mais de 850 milhões de indivíduos no mundo, destes, cerca de 10 milhões são brasileiros, de acordo com dados da Sociedade Brasileira de Nefrologia (SBN).

Mas quando um órgão como o rim não funciona mais nem se recupera com tratamentos convencionais, a única solução é o transplante. Um procedimento de alta complexidade, que exige muita competência médica, estrutura hospitalar e solidariedade humana. “Quando se trata dos idosos, um terço deles apresenta algum grau de lesão renal e muitos necessitam esperar por um novo órgão”, explica o médico nefrologista Alexandre Tortoza Bignelli, coordenador do Serviço de Transplante Renal do HUC.

Entre janeiro e junho de 2022, foram realizados mais de 12 mil transplantes de órgãos, tecidos e medula óssea no Brasil, o que representa um crescimento de 17% em relação ao mesmo período do ano anterior. Nesse sentido, o Brasil conta com um dos maiores sistemas públicos de transplantes do planeta, com cerca de 95% dos procedimentos financiados pelo SUS. Em números absolutos, o Brasil é o terceiro maior transplantador do mundo, atrás apenas dos Estados Unidos e da Índia.

Dentro dessa operação, o Hospital Universitário Cajuru é referência em transplantes renais. Há mais de duas décadas atuando com pacientes renais crônicos, Bignelli explica que a instituição é destaque não só no Paraná, no Brasil, como também no mundo. Isso em razão dos altos índices de sobrevida do enxerto transplantado e dos pacientes, chegando a 95% dos casos no Hospital Universitário Cajuru. “Olhando para trás, não trocaria por nada o que escolhi para a minha vida, uma vez que eu e minha equipe permitimos que pacientes deixem a condição de dependência de uma máquina para a condição de liberdade”, reforça. No entanto, o especialista revela que enfrentam dificuldades diante de um elemento vital para o transplante: o doador. 

Ato de amor que salva vidas

Manifestar o desejo de se tornar doador, deixando pais, filhos, irmãos e demais familiares cientes dessa decisão, dá segurança e tranquilidade para quem será consultado pelas equipes responsáveis pelo transplante. É no que acredita Maykon José de Freitas, coordenador da Comissão Intra Hospitalar de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplante (CIHDOTT), do Hospital Universitário Cajuru. Ele lida dia após dia com o fim e o recomeço de vidas, somando mais de 270 famílias que disseram “sim” para a doação de órgãos, durante os dez anos que atua na comissão. “Nosso objetivo é fazer com que as pessoas da fila sejam beneficiadas com o que há de mais importante: a qualidade de vida. No final, o sentimento é de dever cumprido”, conta. 

Envolvidos na rede de esperança, solidariedade e amor, os profissionais que atuam na captação de órgãos junto de Maykon carregam a missão de conversar com famílias e garantir o entendimento de todo o processo a partir dali. O trabalho deles começa após a confirmação da morte encefálica de um paciente, um momento delicado e que não permite nenhuma falha. Hoje, o hospital de Curitiba se destaca na captação de órgãos, com 72% de entrevistas com as famílias convertidas em doações. Uma média considerada boa ao comparar com os 28% de doações efetivadas em todo o Brasil.

O debate pela doação de órgãos é sempre urgente, principalmente ao se considerar que a cada milhão de pessoas, menos de 20 são doadoras de órgãos – de acordo com a Aliança Brasileira pela Doação de Órgãos e Tecidos (ADOTE). Contudo, uma única conversa declarando-se doador pode mudar esse cenário. “É emocionante saber que, de repente, você pode ter de volta uma vida quase normal. Eu, mesmo, choro quando lembro. Por isso, bato sempre na mesma tecla: por favor, sejam doadores de órgãos”, confidencia Nelson, transplantado renal. Da mesma forma, José também faz um pedido: “Espero que todos reflitam com calma sobre a questão da doação de órgãos, tão importante para toda a sociedade”.