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O Cavaleiro das Trevas e a corrida contra o tempo em Gotham

Antes do primeiro plano aparecer na tela, já é possível ouvir a trilha de Hans Zimmer e James Newton Howard martelando como um temporizador, em seguida o assalto ao banco tem início e com ele a melhor sequência do longa, onde o diretor vai buscar no filme de ação consagrado de Michael Mann, Fogo Contra Fogo (1995), sua maior referência, seja na decupagem da cena como um todo em relação ao espaço público de Gotham ou no método calculista dos bandidos. A grande diferença aqui é que, à medida em que o assalto acontece, os próprios integrantes da quadrilha vão se matando até restar somente um, afinal de contas, não há tempo para atrasos e dessa forma, o Coringa, sendo o único sobrevivente do grupo, deixa o banco em um ônibus escolar exatamente quando uma fila de veículos semelhantes está passando pela rua.

O tic-tac do relógio de Zimmer e Howard volta a aparecer em uma reunião emergencial dos grupos criminosos mais poderosos de Gotham. A questão principal a ser debatida passava mais uma vez pela falta de tempo, já que parte do dinheiro do grupo foi roubado e a polícia já estava se preparando para uma ação simultânea contra todos eles. Nesse sentido, é interessante perceber como, ao invadir a reunião, a câmera de Nolan coloca o Coringa de Heath Ledger em posição privilegiada, tomando quase todo o espaço do quadro. Essa escolha não foi feita apenas pela fama do personagem ou por ser ele o grande antagonista do filme, mas principalmente por ser quem vai trazer à mesa a necessidade urgente de se livrar do Batman antes que seja tarde demais para todos os presentes.

Se o tempo é chave em Cavaleiro das Trevas e a justiça comum, por sua vez, é extremamente morosa, o único personagem capaz de mudar a dinâmica e acelerar esse processo é o Batman. Gosto de como o Nolan reforça essa questão ao colocar o seu protagonista para buscar um criminoso do outro lado do mundo e trazê-lo de volta à tempo da polícia executar sua grande operação conjunta contra o crime organizado. Outra cena marcou bastante nesse sentido tem início logo após a Alfred alertar Bruce Wayne de que “algumas pessoas só querem ver o circo pegar fogo”. Após o diálogo, há um corte do rosto do Coringa para um plano aberto predominantemente azul do herói no topo de um prédio, referenciando uma cena clássica de Neil McCauley, personagem de Robert De Niro em Fogo Contra Fogo (1995) não apenas no aspecto visual mas também porque McCauley é um personagem que precisa calcular seu tempo muito bem. À primeira vista pode até parecer que a cena está tratando de um momento de reflexão do personagem após a conversa que teve com o seu mordomo, entretanto, o movimento de câmera que se fecha rapidamente no protagonista e a trilha emulando uma sirene estabelecem o ar de urgência que paira sobre a cidade de Gotham.

Quando se vive com muita pressa, torna-se inevitável que algumas decisões sejam tomadas baseadas no calor do momento e que as consequências destas fiquem para depois. E apesar de ser conhecido por ser um personagem que planeja muito bem todos os seus passos, em Cavaleiro das Trevas o Batman é colocado constantemente em uma posição desconfortável, onde precisa decidir tudo no baseando-se no tempo de seu antagonista. Até mesmo depois daquela viradinha com o Gordon surpreendendo o Coringa após a cena de perseguição, momento raro de vitória para o lado do bem, não demora muito para  que o Batman volte à posição de desconforto e tenha que escolher entre salvar a vida do promotor que representa uma certa moralidade da cidade ou salvar a vida mulher que ele ama. Em condições normais, o herói, que também é muito conhecido pelo seu lado sagaz de detetive, poderia muito bem ter suspeitado que a localização estava errada e seguido para a direção oposta. Contudo, o momento exigia agir antes de pensar, deixar o emocional tomar o controle e como consequência disso, surge uma nova tragédia da vida do herói.


É interessante pensar como a morte da personagem Rachel gera ramificações aqui e como elas são traduzidas para a tela pelo diretor. Harvey Dent também ‘morre’ com ela e um novo vilão surge, afligido pela perda da única pessoa que ama e com sua bússola moral completamente despedaçada. O Batman aparece em uma cena assustadora em meio aos escombros que remete à uma sensação imediata de luto mas que não dura quase nada, pois não há tempo para se lamentar. Enquanto isso, o Coringa está celebrando sua fuga em um carro da polícia, cena que evidencia o poder do antagonista perante as instituições. São três pontos de vista essencialmente divergentes mas que foram criados a partir dessa escassez do tempo em Gotham.

O que impede Cavaleiro das Trevas de ser um filme excelente não reside apenas nessa busca pelo ultrarrealismo, que mesmo com seus excessos (como escolher filmar Gotham como uma cidade comum) está dentro de uma unidade proposta pelo diretor, mas sim em um senso de auto importância e de diálogos espertinhos que aparecem em dado momento apenas para serem repetidos em outro, como Alfred falando a Bruce que não gostaria de dizer “eu te avisei” caso desse tudo errado. Além disso, existe certo desinteresse em decupar muitas das cenas, mas felizmente, aqui Nolan parece mais consciente de que não conseguiria desenvolver um estilo próprio e delega boa parte do seu filme a uma espécie de ‘piloto automático’, o que enfraquece um pouco o tom de urgência e o peso emocional mas que consegue entregar o mínimo necessário. Em uma das últimas cenas do filme, Duas-Caras está fazendo a família do Comissário Gordon de refém, o monólogo do vilão sobre decência e corrupção, no papel, é ótimo e a situação é tensa por si só, está tudo pronto para um grande encerramento, porém, todo o potencial emocional fica reprimido já que a cena é filmada sem nenhum interesse que não seja o de ilustrar o que estava no roteiro e as atuações acabam sendo as únicas responsáveis por fazer a cena funcionar, com destaque para o desempenho de Aaron Eckhart.


No fim das contas, Cavaleiro das Trevas funciona muito bem quando impõe essa urgência temporal e quando se inspira na ambientação dos filmes policiais de Michael Mann para construir um espaço público onde a ação acontece. Entretanto, nas resoluções dramáticas, o filme acaba não se saindo muito bem justamente pelo desinteresse do diretor em trabalhar as cenas de forma mais criativa. Isso acaba fazendo com que as atuações sejam responsáveis isoladamente por conduzir o espectador. Nesse sentido, Nolan teve a sorte de escalar Heath Ledger como um Coringa que não só captura muito bem a essência anárquica do personagem como é responsável por ditar o ritmo das ações em Gotham. O interrogatório com o Batman reforça muito bem essa ideia, enquanto o herói tem pressa para obter as respostas que deseja, excede o tom de voz e escala a violência física, o palhaço apenas gargalha de tudo aquilo. Seria fácil presumir que essa risada acontece apenas porque o Coringa está se divertindo com a situação, mas não é exatamente isso. Claro, o personagem vive em busca do caos e nele encontra sua razão de ser, mas naquele momento a sua risada está na certeza de que ele tem algo que o homem-morcego não tem: tempo.

Batman: O Cavaleiro das Trevas está disponível em streaming na HBO MAX.


Texto por André Fernandes