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Na Praia à Noite Sozinha e a fuga da realidade

A forma como Sang-soo opera por trás da câmera parece um tipo de milagre e tudo fica ainda mais misterioso (e bonito) quando se leva em consideração o fato de que, desde o seu quarto filme, o diretor escreve seus roteiros nas manhãs dos dias de filmagem. Dizer que esse é mais um filme autobiográfico ou que é apenas parecido com vários outros da filmografia do diretor seria muito óbvio, mesmo sendo verdade, ou melhor, parcialmente verdade. Na Praia à Noite Sozinha pode ser tudo menos “mais um filme” de Hong Sang-soo, digo isso porque o diretor encontrou nessa fórmula um jeito de se reinventar e de lidar com relações humanas do jeito mais natural possível. Hong parece encontrar suas obras-primas sem fazer nenhum esforço consciente para que isso aconteça, pois é um cineasta que acredita tão apaixonadamente na arte que seu método acaba sendo uma antítese do método.

Se o roteiro é escrito na manhã da gravação das cenas, os imprevistos que acontecem durante essas gravações também servem para serem incluídos no filme, como um barulho de avião enquanto Younghee está cantando do lado de fora do bar/restaurante. Mas quando não há exatamente um planejamento, o que poderia ser considerado imprevisto? É como se Sang-soo confiasse plenamente no mundo ao seu redor para lhe agraciar com algum novo elemento. Também é óbvio que o diretor possui um talento único, caso contrário teríamos diversos cineastas do mesmo nível, mas estes são poucos, mesmo levando em consideração toda a história do cinema.

Na Praia à Noite Sozinha não poderia ter um título melhor, pois o filme de Hong gira em torno da solidão de Younghee enquanto esta reflete sobre o seu relacionamento com um diretor de cinema casado e bem mais velho do que ela. Mais uma vez buscando uma maneira natural de retratar a angústia de um relacionamento conturbado, o diretor coloca sua protagonista, pelo menos na maior parte do tempo, cercada por outros personagens – o que quase sempre acaba gerando alguma discussão, como quando Younghee fala que seus amigos não são dignos de amar – para mostrar que apesar de qualquer aparência ou presença, a dor continua existindo e se manifestando através do pessimismo e do ressentimento.

Toda a primeira parte do filme funciona como uma espécie de refúgio para Younghee, tanto que ela abre o filme falando do quanto gosta de passear pelos mercados e parques da cidade holandesa. Há conversas sinceras e passeios agradáveis com sua amiga Jeeyoung, músicas no teclado de casa e no piano do compositor, um almoço agradável com amigos e mais. O único momento dissonante da primeira etapa acontece quando um rapaz misterioso interrompe Younghee e Jeeyoung para perguntar, em Coreano, se elas sabem que horas são. Apesar de parecer banal, esta é uma cena-chave da primeira etapa porque é como se o rapaz estivesse alertando a personagem de Kim Min-hee de que está na hora de voltar para casa e lidar com a situação da qual ela está se escondendo. Após o primeiro aviso, o rapaz retorna e desta vez leva a protagonista com ele para encerrar a primeira parte.

O ar de mistério também é um charme do cinema de Hong, então quando a segunda parte do filme tem início com um plano de Younghee numa sala de cinema com os olhos marejados, é inevitável pensar que o cineasta operou um milagre cinematográfico e que o rapaz misterioso de alguma maneira trouxe a protagonista de volta para a Coréia do Sul. A partir daí existem alguns pequenos momentos de alegria mas tudo fica meio desesperançoso na vida da personagem. Apesar disso, ela sabe que precisa falar sobre o que está sentindo e depois de descontar nos amigos, vai buscar seu novo refúgio no ‘mesmo lugar’ em que foi expulsa do primeiro. É muito interessante perceber como o Sang-soo estabelece a praia como essa espécie de portal onde a protagonista pode descarregar parte da sua angústia e de suas frustrações, mesmo que seja em um sonho. Afinal, esse mesmo sonho funcionou como um ensaio à espera do momento verdadeiro e pôde trazer algum alívio. Enquanto a hora certa não chega, Younghee segue caminhando e refletindo, na praia ou na cidade, durante o dia ou durante a noite, acompanhada ou sozinha.

Texto por André Fernandes


Na Praia à Noite Sozinha está disponível para aluguel e compra na Google Play.