Apichatpong: cineasta e arquiteto de Memória (2021)

Apichatpong ‘Joe’ Weerasethakul é um diretor de cinema tailândes e um dos maiores de sua geração. Seus filmes podem ser reconhecidos como slow-cinema no melhor dos sentidos, pois ‘Joe’ não tem pressa alguma para mostrar o que quer e sempre oferece uma experiência arrebatadora a quem decide embarcar nas jornadas de seus personagens. Outra assinatura do diretor está na relação em que ele estabelece com os espaços arquitetônicos de seus filmes e apesar de se sentir visivelmente mais à vontade quando está filmando no coração das florestas tailandesas, a sua câmera percorre espaços urbanos  com elegância e parcimônia, quase como um espírito vagando lentamente por eles – e a questão da espiritualidade é outro tema caríssimo ao realizador.


A relação entre Weerasethakul e a arquitetura não se dá por acaso, pois antes de iniciar a  carreira de cineasta, o diretor obteve o título de licenciatura em Arquitetura pela Universidade de Khon Kaen. Em entrevista ao site Art in America, ‘Joe’ afirma que diretores de cinema e arquitetos operam do mesmo modo e que edifícios e filmes são criados com o mesmo objetivo de oferecer uma experiência/jornada. Em seu último lançamento e primeiro longa filmado fora da Tailândia, Memoria (2021), Apichatpong estreita ainda mais os laços entre suas personagens e os espaços urbanos, mas sem deixar de lado a sua essência do campo. O filme apresenta a história de Jessica (Tilda Swinton), que está de viagem na Colômbia para visitar sua irmã hospitalizada e que pouco tempo depois de sua chegada começa a escutar um forte estrondo que ninguém mais consegue ouvir. A partir daí, a personagem inicia uma investigação para descobrir a origem do som mas acaba revelando muito mais do que poderia imaginar sobre si mesma.

O primeiro plano de Memoria já estabelece tanto o seu ritmo quanto a sensação de isolamento que atravessa a protagonista: Jessica está em um quarto escuro e após acordar repentinamente, ouve o estrondo cujo mistério serve de incidente-incitante (o acontecimento que dá início à história) para o longa. Em seguida, ela caminha lentamente pelos cômodos da casa, sem demonstrar ansiedade ou preocupação, mas o oposto disso, como se estivesse tentando entender aquela situação com a maior calma do mundo. Essa postura impassível de Jessica é sua principal característica e, ao mesmo tempo, é também o elo responsável por conectar verdadeiramente a personagem aos ambientes pelos quais ela circula e às pessoas que encontra no caminho.

Memoria é, essencialmente, um filme sobre o som. Mas engana-se quem pensa que o som aqui significa, necessariamente, a produção de ruído sonoro. É bem verdade que o longa gira em torno do estrondo que a protagonista escuta, mas é justamente nos intervalos silenciosos que Apichatpong parece ter mais a dizer. É nesse silêncio que Jessica observa com atenção quadros, livros, praças, esculturas e a própria natureza, experiências que dividimos com ela enquanto espectadores.

Em seu livro Os Olhos da Pele: a arquitetura e os sentidos, Juhani Pallasmaa afirma que: “o silêncio da arquitetura é um silêncio afável e memorável. Uma experiência poderosa de arquitetura silencia todo ruído externo; ela foca nossa direção e nossa própria existência, e, como se dá com qualquer forma de arte, nos torna cientes de nossa solidão original.” Então, apesar de Memoria não ser um filme sobre arquitetura em si, os momentos silenciosos e o tempo que o diretor concede a estes tornam possível a existência de uma conexão intensa e real da protagonista não apenas com os espaços fechados mas também com a própria cidade de Bogotá. E essa conexão também reflete a solidão apontada por Pallasmaa, além de ser reforçada por Apichatpong, que isola a personagem de Tilda Swinton de modo que em muitos momentos ela aparece deslocada no quadro ou coberta por sombras. No corte mais fantástico do filme, Jessica assiste a uma apresentação de jazz que se encerra com uma transição abrupta para uma sala vazia e silenciosa, como se ‘Joe’ quisesse comunicar ao espectador que é possível refletir e apreciar ambos os momentos, cada um à sua própria maneira.

Passada a primeira hora de projeção, Weerasethakul apresenta outra de suas assinaturas enquanto cinesta: a de dividir seus filmes em duas partes, como se uma fosse uma espécie de espelho narrativo da outra. No entanto, as mudanças aqui não são tão drásticas quanto em outros longas do cinesta como Mal dos Trópicos (2004) ou Síndromes e um Século (2006). Continuamos acompanhando a jornada de Jessica em busca da origem do estrondo, a grande mudança é que agora a personagem se encontra em uma área rural da Colômbia, onde parece estar mais à vontade, assim como o próprio diretor. O filme agora se torna ainda mais silencioso e seu ritmo vai se tornando cada vez mais dilatado. Quando Jessica encontra o pescador Hernán às margens de um rio, o tempo parece suspenso por alguns minutos e o encontro dos dois possibilita uma reflexão profunda sobre tempo, espaço e memória. Nesse momento, o diretor também parece ter feito uma pausa, como alguém que deixou a câmera ligada apenas para permitir ser supreendido pelos mistérios da natureza.


Em tempos de Tik Tok e de uma lógica de consumo cada vez mais acelerada, Apichatpong realiza um filme que exige ainda mais da atenção e do comprometimento do espectador, mas que o recompensa na mesma medida. ‘Joe’ nos convida à uma operação mental que muitas vezes nos esquecemos de colocar em prática, a de olhar para dentro de nós mesmos e, a partir disso, tentar entender um pouco mais sobre o outro e sobre o mundo em que vivemos. Afinal, a busca de Jessica é também reflexo da curiosidade humana e da necessidade de ir de encontro ao desconhecido.

Muito se fala sobre a necessidade de entender filmes – num sentido mais pragmático da coisa – para que se possa verdadeiramente gostar deles e acredito que isso seja uma tremenda bobagem. Para ser tocado pela experiência de Memoria basta estar de olhos e ouvidos bem abertos. Mas se puder ser numa sala de cinema com uma tela grande e um ótimo sistema de som, melhor.

Por André Fernandes

Memoria (2021) está disponível em streaming na MUBI e para aluguel/compra na Google Play

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Paraná ganha primeiro cinema em Outlet no Brasil

O público paranaense tem uma nova opção para assistir a sessões de Cinema. A rede Cineplus inaugurou, no último sábado (14/01) sua segunda sala, de cinco previstas, nas dependências do City Center Outlet Premium – Grupo Tacla. Segundo a administração do cinema, até o final de janeiro serão três salas que comportam 160 lugares cada, em formato 3D, uma já está em funcionamento, a segunda abriu neste fim de semana e a terceira na próxima quinta-feira (19/01).

A Cineplus destaca ainda que até o mês de março entra em operação uma sala TSX, com tela de mais de 140 metros quadrados e que vai comportar 363 lugares. O espaço também será utilizado para realização de palestras, eventos e apresentações multiuso. Para finalizar as inaugurações dos serviços ao público, em julho está previsto a disponibilização de uma sala semi-vip com 88 lugares.

“É um diferencial que o primeiro outlet do Paraná traz para seu público. Milhares de pessoas que circulam pela BR-277 entre Litoral e Interior e moradores de Curitiba e Região terão mais opções para assistir seus filmes preferidos, seja na pausa durante a viagem, seja no programa de compras no Outlet”, diz o superintendente do City Center Outlet, Maikon Bruno.

Atrações por vir

Junto ao cinema do City Center haverá um Pub anexo a um restaurante que será aberto ao público no mês de fevereiro segundo a Cineplus. Além de muitos petiscos e cardápio variado de drinks, chopp em dobro no happy hour de sextas e sábados, a programação prevê uma vez por semana uma banda ao vivo, denominada ‘Banda da Casa’, que vai tocar músicas que fazem parte de trilhas de filmes. As pessoas terão a possibilidade de locar o espaço ainda para fazer suas comemorações de aniversário por exemplo.

Atendimento e Ingresso

Domingo a quinta-feira – 13h30 às 22h.

Sextas e sábados – 13h30 às 23h.

Ingressos a R$ 30,00 e meia entrada a R$ 15,00.

Promoção – Todas as terças-feiras e todas as últimas quartas-feiras do mês, ingressos a R$ 15,00.

Bomboniere diversificada – destaque para os baldes de pipocas doces e salgadas com preços que variam de R$ 10,00 a R$ 28,00

Ingressos pelo site – www.cinemacineplus.com.br

Horário de Atendimento City Center Outlet Premium

Diariamente das 10h às 22h.

Endereço – Rua João Bertoja, 1995 – Itaqui de Cima – Campo Largo.

BR 277 – Acesso pelo KM 122 em ambos os sentidos.

Endereço eletrônico-   www.citycenteroutlet.com.br

Blonde (2022): quando a denúncia se torna cumplicidade

Baseado no livro homônimo da escritora Joyce Carol Oates, Blonde propõe um exercício de ficção em torno da figura de uma das maiores estrelas da história do cinema, a atriz Norma Jeane, mais conhecida como Marilyn Monroe. O longa tem produção da Netflix e a missão de adaptar a história para as telas ficou a cargo do diretor neozelandês Andrew Dominik, mais conhecido pelo filme O Assassinato de Jesse James pelo Covarde Robert Ford (2007).

Os primeiros 20 minutos já são mais que suficientes para que o espectador entenda qual será o tom do filme pelas próximas 2h27 e de que forma Dominik irá lidar com essa história que é permeada por traumas. Afinal, nesse curto intervalo de tempo já é possível ver agressões físicas, abuso infantil, uma tentativa de assassinato e uma cena de estupro. Além disso, é possível identificar algumas escolhas estilísticas que também irão permanecer durante todo o filme, como a troca de aspect ratio (formato do quadro cinematográfico) e a alternância entre filmar em cor e em preto e branco. Ambas escolhas são completamente esvaziadas de sentido, já que não encontram nenhuma função na narrativa que não seja meramente estética.

Não há como julgar a intenção de um filme, apenas o resultado final. E por mais que Blonde tenha intenção de denunciar os abusos que acontecem não somente com a protagonista, mas também com as mulheres em Hollywood de maneira geral, o que acontece na prática é exatamente o oposto. Dominik se torna cúmplice do que parece querer condenar ao reduzir a figura emblemática de Monroe a uma mulher cujo único propósito é o sofrimento e este não pode ocorrer de qualquer modo, já que a angústia da personagem é sempre capturada de uma maneira estéticamente agradável. Consequentemente, a estrela de cinema Marilyn Monroe se apaga quase que completamente, já que sua relação com os próprios filmes é sempre tratada de maneira superficial e/ou exploratória, seja indo às lágrimas na leitura de roteiros ou quando enfim aparece durante a gravação de um dos momentos icônicos de sua carreira no filme O Pecado Mora ao Lado (1955), cena que não apenas trata o acontecimento como mera objetificação masculina, mas também a utiliza como motivação para uma nova agressão.

A escolha isolada de mostrar uma vida repleta de abusos não é necessariamente boa ou ruim, mas o que acontece em Blonde é que o diretor não oferece nenhuma progressão para a sua protagonista em meio a tanta desgraça. Quando vemos Marilyn sofrer não aprendemos nada novo (parece que ela também não) ou sequer temos oportunidade de observar como a personagem lida com tantas questões traumáticas. A montagem, que busca confundir mais do que explicar, também colabora para que haja uma sensação de que o filme está apenas saltando de um abuso para o outro, como se a protagonista estivesse presa numa versão macabra de Feitiço do Tempo (1993) ou algo parecido.

A única questão que permanece ao longo do filme, para além dos repetidos abusos, é a necessidade de Norma Jeane em conhecer seu pai, cujas cartas pareciam ser a única coisa que a personagem tinha de bom e verdadeiro em sua vida. Entretanto, no ato final, a personagem descobre que quem escrevia as cartas em nome de seu pai era na verdade um de seus ex-namorados, ou seja, o único alívio na vida de Norma também era uma mentira. Após esse ponto, não há surpresa alguma com a sugestão de suicídio que encerra o filme.

Por se tratar de uma biografia ficcional, Blonde poderia ter explorado os mais diversos caminhos ou, na pior das hipóteses, ter tratado sua protagonista – uma das maiores estrelas de cinema e da cultura pop de todos os tempos –  com um pouco mais de dignidade. É preciso destacar também que Ana de Armas oferece uma grande atuação e sua caracterização está impecável, especialmente nos trejeitos e no tom de voz assustadoramente parecido com o de Monroe, no entanto, seu talento e dedicação perdem força à medida em que Andrew Dominik opta por fazer um filme completamente apelativo, explorando o sofrimento, o corpo e o peso histórico da atriz a troco de nada, ou melhor, talvez na esperança de conseguir uma indicação ao Oscar.

Texto por André Fernandes

Blonde (2022) está disponível em streaming na Netflix.


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